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quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Unicidade e dualidade de jurisdição, por João Antunes dos Santos Neto

João Antunes dos Santos Neto
JUIZ DE DIREITO NO ESTADO DE SÃO PAULO,
professor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo,
titular da cadeira de Direito Administrativo

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Unicidade de jurisdição
- 3. Dualidade de jurisdição - O concencioso administrativo
- 4. O sistema administrativo brasileiro - 5.
Considerações finais

1. Introdução
ema que sempre suscitou curiosidade aos estudiosos e, na mesma
proporção, divergências acentuadas acerca de sua profundidade e aplicabilidade
prática na jurisprudência, o controle dos atos administrativos
e a forma pela qual aquele é exercido, no mais das vezes, chega mesmo a
servir de referência a indicar a qual sistema universal contemporâneo pertence
determinado ordenamento jurídico, absorvendo-se a atual estrutura da comunidade
internacional política e juridicamente organizada, ou, no mínimo,
a especificar a qual corrente se filia a vertente teleológica de sua instituição,
consideradas as escolas fundamentais que se formaram desde a evolução da
problemática no estudo do Direito Administrativo comparado.
Tanto é assim que Hely Lopes Meirelles1 define sistema administrativo como
sendo a mesma coisa que “sistema de controle jurisdicional da Administração”,
T
1 HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, RT, 1989, p. 42.
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promovendo esforço a empregar à assertiva o caráter de modernidade afirmativa
que o vocábulo exigiria em sua respeitada visão. Para o festejado administrativista,
por sistema administrativo, ou sistema de controle jurisdicional da
Administração, entende-se “o regime adotado pelo Estado para a correção dos
atos administrativos ilegais ou ilegítimos, praticados pelo Poder Público, em qualquer
dos seus departamentos de governo”.

Partindo de uma análise mais científica acerca do que se poderia compreender
quanto ao tema, Cretella Júnior2, inspirado em Castán Tobeñas, Armignon,
Nolde e Wolff, fixa a definição de sistema jurídico como sendo “o conjunto
de regras e instituições de direito positivo, pelas quais se regem determinadas
coletividades, sendo seus elementos essenciais uma legislação que serve de vínculo à
coletividade que rege e uma certa autonomia, quando menos legislativa”.
Este não se confundiria com sistematização e permitiria a possibilidade
da extração de sua divisão, o que ocorreria, verdadeiramente, no exemplo de
Hely, ao se considerar a indagação do momento do problema da filosofia da
justiça administrativa consagrada na unicidade ou duplicidade de jurisdição
esposada, dependente da adoção do sistema (ou subsistema) do contencioso
administrativo (de jurisdição dual) ou do sistema de controle judiciário (de jurisdição
una) dos atos praticados pela administração.
Apartando-nos de discussões acadêmicas e etimológicas quanto ao instituto,
centremo-nos no desenvolvimento analítico que a proposição temática
central exige, advertindo-se que, por mais consentânea, aceita-se a proposição
segunda a definir o vocábulo sistema, dentre as cotejadas inicialmente.
Apresentam-se, hodiernamente, no mundo, duas grandes subdivisões de
sistemas administrativos bem diferenciados quando o objeto é o controle dos
atos administrativos: um, que provocou a bifurcação do poder jurisdicional
em duas categorias, conhecido como contencioso administrativo, ou sistema
francês de controle, e outro, de jurisdição única tanto para as questões administrativas
como para as decorrentes dos conflitos originados no âmbito do direito
privado, conhecido como sistema judiciário ou sistema inglês de controle.
Importantes pilares a informarem a justiça administrativa moderna nos
mais diferenciados sistemas administrativos gerais conhecidos e admitidos
(sistema ocidental, sistema do Direito soviético, sistema de Direito muçulmano,
2 JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, Direito Administrativo Comparado, J. Bushatsky, 1972, pp. 34 e segs.
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sistema de Direito hindu e sistema de Direito chinês)3, antes de se especializar o
estudo quanto àquelas duas vertentes, de trazer-se à colação o legado de
Seabra Fagundes4, que não admitia a fusão de um ou de outro sistema de
controle como forma de originar um terceiro, vulgar e freqüentemente designado
de sistema misto.
Isso porque, segundo a ponderação do dileto autor, “nenhum país aplica
um sistema de controle puro, seja através do Poder Judiciário, seja através de tribunais
administrativos”, o que reforça a conclusão de que a caracterização daquele
é a predominância da jurisdição comum ou da especial, e não a exclusividade
de qualquer uma delas na supressão dos conflitos de interesse nos quais é
parte a Administração como um todo.
2. Unicidade de jurisdição
O sistema de jurisdição única, também conhecido por sistema judiciário ou
inglês, e modernamente conceituado por parte da doutrina como sistema de
controle judicial, é aquele em que todos os litígios, sejam eles de natureza
administrativa ou que envolvam a Administração, bem como aqueles revestidos
por interesses eminentemente privados, são resolvidos judicialmente e de
forma exclusiva pela justiça comum (Poder Judiciário).
Originário da Inglaterra, este sistema disseminou-se por diversos países
do globo, muitos deles de base romanística completamente apartada do
common law britânico do qual é natural, destacando-se, dentre outros que o
adotam, os Estados Unidos da América, o México, a Bélgica5, a Romênia e
o Brasil.
A melhor definição, entrementes, do que venha a ser a unicidade de jurisdição,
ou unidade de jurisdição, talvez seja aquela inserta na lição de Eduardo
3 JOSÉ CRETELLA JR., acatando os ensinamentos de Renè David, admite que “a noção genérica de sistema
jurídico, elaborada por cultores do Direito Civil Comparado, possa servir de base para a noção de sistema do
Direito Administrativo, o mesmo ocorrendo, com a classificação dos sistemas jurídicos em geral”. Isso não
impediria de falar-se, então, com base numa obra de cunho civilístico, em sistema de direito administrativo
ocidental, compreendendo o grupo francês e o anglo-americano, razão por que preferimos especificar, no início
da monografia, o sistema de controle da Administração em subsistemas. Apud, ob. cit., p. 62.
4 SEABRA FAGUNDES, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 1957, p. 133, nota I.
5 A Bélgica, a despeito de trazer em sua organização institutos do sistema francês, adota, com predominância,
o sistema da unicidade de jurisdição, inadmitido o chamado sistema misto, sob os critérios, citados e acatados,
da obra de Seabra Fagundes. Entretanto, em tempos mais recentes, este país parece ter consagrado um
sistema de contencioso administrativo, diferenciado, contudo, o sistema clássico, francês.
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Lobo Botelho Gualazzi6, para quem este sistema pode assim ser conceituado
como aquele “em que o mesmo aparelho judicante, com ou sem especializações
internas, conhece e decide a totalidade de litígios, inclusive administrativos, ocorrentes
num Estado soberano, por competência originária ou recursal”.
Razões de natureza histórica e prática, considerada a evolução organizacional
e política da Inglaterra, foram as causas determinantes do aparecimento
do sistema de jurisdição una na estrutura política insular, fazendo-se obrigatório
para o estabelecimento deste raciocínio que a idéia de separação de poderes
— cujas raízes encontram-se fincadas na Antigüidade — foi também
preconizada por pensadores ingleses, sobretudo por John Locke.
A idéia inglesa desta abordagem parece lógica ao se entregar à solução
simplista do silogismo seguinte: se o Estado manifesta sua vontade por meio
de três Poderes, com funções precípuas diversificadas e bem definidas, cabendo
a um desses Poderes (o Judiciário) a incumbência de aplicar a lei ao caso
concreto, ao qual se entrega o conhecimento e a decisão de litígios com exclusividade,
não haveria por que se subtrair de sua apreciação conflitos de interesses
que tivessem por objeto matéria administrativa.
Por outro lado, sustentam diversos doutrinadores de inspiração francesa,
que inexistiria um Direito Administrativo inglês, concepção esta que hoje em
dia se encontra absolutamente superada, mas que serviu, em tempos passados,
a fortalecer a unicidade jurisdicional britânica.
Outra causa para o surgimento e sedimentação do fenômeno residiria na
não-adoção pela Inglaterra do “regime administrativo derrogatório e exorbitante
do Direito Comum, informado por princípios publicísticos diferentes dos que comandam
o Direito Civil e o Comercial. O regime administrativo das prerrogativas e
sujeições informa o Direito francês, mas é repelido pelos Direitos de Common Law”.7
Em razão disso, pareceria lógico a adoção de uma jurisdição única, máxime
ante a comprovação fática da aparência de um contra-senso a criação
de uma justiça especial para solucionar questões administrativas num país
no qual se repele o chamado sistema administrativo e que tem por peculiaridade
a equiparação do funcionário público ao empregado privado, que
estabelece o aplainamento do particular lado a lado com a Administração,
na demonstração mais evidente ao respeito do consagrado princípio da
6 EDUARDO LOBO BOTELHO GUALAZZI, Justiça Administrativa, RT, 1986, p. 115.
7 JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, c.f., EDUARDO LOBO BOTELHO GUALAZZI, ob. cit., p. 117.
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isonomia que informa a maioria das constituições nacionais das soberanias
na atualidade e que julga todas as causas, privadas ou públicas, sem observar
privilégios, prerrogativas e desnivelamentos de qualquer espécie.
Sob o prisma histórico, vivenciou a Inglaterra e, mais especificamente,
suas instituições, uma sedimentação lenta e gradual que durou mais de um
milênio, sem que fossem observadas, no período, rupturas traumáticas de sua
cultura, causadas por revoluções ou insurreições violentas, que pudessem estigmatizar
a evolução e aperfeiçoamento de seu passado. Talvez tenha contribuído
para tanto que, naquele país, ao contrário do que ocorre na França, por
exemplo, os costumes, tradições e precedentes possuem mais valor e relevância
que o idealismo racionalista e revolucionário.
Em um breve apanhado da evolução do sistema uno sob o viés histórico8,
observamos seu íntimo relacionamento com as conquistas do povo britânico
contra os privilégios e desmandos da Corte inglesa.
Nos primórdios daquela monarquia, sob o império do absolutismo, todo
o poder de administrar e julgar concentrava-se na Coroa, evoluindo-se, com o
tempo, a diferenciação do poder de legislar, o qual restou ao Parlamento, do
poder de administrar, conservado pelo rei, na figura de quem se resguardou,
também, o poder de julgar.
Sendo o rei fonte de toda a justiça e destinatário de todos os recursos,
fez-se sentir no povo profunda insegurança quanto a seus direitos, sempre
dependentes da graça real, até que, após período de reivindicações, as quais
não puderam deixar de ser atendidas, criou-se o Tribunal do Rei (King´s
Bench), que, por delegação da Coroa, passou a decidir acerca das reclamações
contra os funcionários do Reino, fazendo-o com a chancela real, o que
satisfez apenas parcialmente os reclamos populares que motivaram sua criação,
posto que, a despeito de agraciar os desejos de uma justiça aparentemente
imparcial, mantinha os julgadores ainda dependentes diretamente
do monarca para tornar efetivas suas medidas.
Este Tribunal do Rei, então, passou a expedir ordens (writs), em nome
próprio, aos funcionários contra quem se recorria e mandados de interdições
de procedimentos administrativos ilegais ou arbitrários, tornando-se usuais,
na concatenação daquela atividade o writ of certiorari, para remediar os casos
8 HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p. 46.
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de incompetência e ilegalidades graves, o writ of injuction, remédio preventivo
destinado a impedir que a Administração modificasse determinada situação e
o writ of mandamus9, destinado a suspender certos procedimentos administrativos
arbitrários, sem se considerar o writ of habeas corpus, reconhecida
garantia constitucional desde a Magna Carta de 1215.
Deste Tribunal do Rei, que só conhecia e decidia matéria de direito, evoluiu-
se para a Câmara Estrela (Star Chamber), com competência em matéria
de direito e de fato e jurisdição superior à justiça de paz dos condados, e de
cujas decisões cabia recurso ao Conselho Privado do Rei (King´s Council), até
que, em 1701, os últimos contornos eram dados à estrutura independente da
Justiça inglesa, com o advento do Act of Settlement, o qual desligou os juízes
do Poder Real, dando-lhes estabilidade no cargo e conservando-lhes a competência
para questões comuns e administrativas.
Era a instituição do Poder Judiciário de jurisdição única, plena e independente,
para julgar todo o procedimento da Administração em igualdade
com os litígios privados, sistema este que posteriormente se irradiou para as
colônias inglesas da América do Norte, nas quais se arraigou tão profundamente
que, após a formação da federação independente, foi alçado ao cânone
constitucional (Constituição dos EE.UU., art. III, Seção 2ª).
Chegam mesmo a afirmar alguns doutrinadores, dentre os quais destacase
Hely Lopes Meirelles10, que a federação norte-americana é a que conserva
com maior pureza o sistema de jurisdição una ou do judicial control, afirmada
na supremacia da lei (rule of law), cujo regime se resume na submissão de
todos à jurisdição da justiça ordinária, cujo campo de ação coincidiria com o
da legislação, sendo ao desta co-extensivo e equivalente.
Todavia, reforçando a tese de Seabra Fagundes, reproduzida em parte no
intróito deste trabalho, nem por esta razão deixaram os Estados Unidos de
criar Tribunais Administrativos e Comissões de Controle Administrativo de certos
serviços ou atividades públicas ou de interesse público, com funções regulamentadoras
e decisórias.
Destacam-se, entre estes Tribunais Administrativos, a Court of Clains, a
9 O mandado de segurança pátrio não se confunde com o writ of mandamus do common law, estando mais
próximo da injuction, nascida na equity; todavia, alguns autores afirmam que sua fonte de inspiração foi o
remédio mexicano do juicio de amparo, o qual se teria inspirado, segundo High, nos Extraordinary Legal
Remedies do Direito anglo-saxônico citado.
10 HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p. 47.
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Court of Custom Appeals e a Court of Record, e, dentre aquelas Comissões, a
Interstate Commerce Commission, a Federal Trade Commission, a Tariff Commission
e a Public Service Commission, os quais não proferem decisões definitivas e
conclusivas para a Justiça comum, cabendo ao Poder Judiciário torná-las efetivas
por ato conhecido como enforced, isso quando resistidas, oportunidade em
que se permite a reapreciação da matéria de fato e de direito contemplada
administrativamente. Denomina-se essa prática administrativa a do duplo freio,
que verdadeiramente reduz o procedimento da Administração à condição de
simples inquérito preliminar.
Em razão disso, seria permitido, talvez, se poder afirmar, com segurança,
inexistir no sistema anglo-saxônico o chamado contencioso administrativo do
regime francês, vez que, naquele, toda controvérsia, litígio ou questão entre
particulares e a Administração se resolve perante o Poder Judiciário, que é o
único a poder proferir decisões conclusivas (final enforcing power).
Merece, entretanto, estudo mais aprofundado, quanto ao tema em comento,
o fenômeno das chamadas agências do direito norte-americano, que
vêm servindo de inspiração a vários países de base diversa do common law nos
tempos modernos, num fenômeno de absorção do instituto à sua organização
administrativa. Isso se faz necessário porque, nos Estados Unidos da América,
estas agências recebem delegação de matéria legislativa e, por vezes, de matéria
jurisdicional, formulando um contraponto ao sistema de jurisdição una
em comento, posto que, ainda que em regime de exceção, algumas vezes,
proferem decisões sobre matéria técnica com força similar à do referido final
enforcing power.
Nos Estados Unidos da América, com exclusão dos três poderes (Tribunais,
Congresso e Presidência da República), “todas as demais autoridades públicas
constituem agências” 11, na forma do disposto pelo Administrative Procedure
Act (Lei de Procedimento Administrativo). A despeito de existirem na mais
variada forma, a classificação mais antiga as designava, no singular, como regulatory
agency e non regulatory agency, conforme tivessem ou não poderes normativos
delegados pelo Congresso. As normas baixadas pela primeira categoria
de agências (regulatory agencies) afetam os direitos, liberdades e atividades
econômicas dos particulares, ao passo que a atividade da segunda categoria
(non regulatory agencies) seria a de “prestar serviços sociais”. Exemplos da última
11 MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Parcerias na Administração Pública, 2002, pp. 143 e segs.
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são a Equal Employment Opportunity Commission, a Social Security Administration
e a Postal Service Agency, sendo exemplos da primeira a Federal Energy
Regulatory Commission, a Federal Labor Relations Authority e a National Security
Council, dentre outras.
Sem embargo de outras classificações existirem para o fim de distinguir o
papel das agências (executive agencies e independent regulatory agencies or
commissions), o fato é que elas exercem funções quase-legislativas e quasejudiciais,
como se disse, por delegação do Congresso. Ernest Gellhorn e Ronald
M. Levin12, ao mesmo tempo em que advertem quanto aos estritos mandamentos
do artigo III da Constituição norte-americana, que consagra a regra da unicidade
de jurisdição, exercitada por juízes com “vitaliciedade no cargo e proteção
salarial”, admitem que determinadas questões de interesse público possam ser
“resolvidas” no plano da “arbitragem” das agências, desde que haja prévia “delegação
de poder judicial” à agência competente em razão da matéria, citando
diversos precedentes judiciais que acolhem a viabilidade da situação colacionada.
Sustentam os autores ser mesmo “necessária” a delegação em tela para “fazer
efetivo o sistema regulatório, não havendo, desta forma, razão para invalidar a
mínima transferência de jurisdição, na forma do artigo III da Constituição” 13.
Não obstante as decisões das agências poderem ser rediscutidas perante o
Poder Judiciário, é fato que, em determinadas situações, esse poder de revisão
é mitigado por impedimentos dirigidos à regra do judicial control, sobre que
já se teve oportunidade de discorrer. Neste diapasão, encontramos, na melhor
doutrina de Steven J. Cann14, algumas exceções ao controle do Poder Judiciário,
consagrados pela Jurisprudência da Suprema Corte norte-americana.
Dentre algumas, cita a “deferência à discricionariedade técnica”, muito mais
apropriada às agências do que aos juízes (como exemplo, faz menção ao fato
de que as Cortes, juízes, operadores de direito, jurados não são particularmente
indicados para resolver conflitos concernentes à otimização de partículas
de benzeno no ar do ambiente laboral, como também não o seriam para
avaliar questões técnicas quanto ao incremento de pesquisas embrionárias ou
alterações genéticas em alimentos, dentre outras tantas questões), pelo fato de “o
campo do direito administrativo possuir muitos outros critérios fronteiriços a serem
encontrados em outros ramos do conhecimento, que não a ciência jurídica”.
12 ERNEST GELLHORN e RONALD M. LEVIN, Administrative Law and Process, 2000, p. 28.
13 ERNEST GELLHORN e RONALD M. LEVIN, ob. cit. p. 29.
14 STEVEN J. CANN, Administrative Law, 2002, p. 115.
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Ainda que haja a possibilidade de se levarem ao conhecimento do Poder
Judiciário as decisões das agências, advertem-nos Alfred C. Aman Jr. e Willian
T. Maton15 que, na prática, os remédios conhecidos perderam espaço em face
da jurisprudência que se formou quanto ao assunto. Assim é que o writ of
certiorari perdeu espaço para o writ of mandamus como forma de revisão da
ação das agências, limitando-se as possibilidades de sua concretização. Celso
Agrícola Barbi16 define o certiorari como o remédio judicial extraordinário de
modo a constituir-se naquele “utilizado para a revisão de atos da Administração
de natureza quase-judicial (...) sua finalidade não é proibir, mas sim anular
decisões das autoridades inferiores (...)”, ao passo que o mandamus é aquele
utilizado “para compelir o funcionário à prática de ato do seu ofício, nos casos em
que o servidor não tem poder discricionário (...)”.
Vê-se, destarte, que as limitações, impostas, no common law norte-americano,
à revisão das decisões quase-judiciais das agências, praticamente forçam
a extração da ilação de que se consagrou naquele país a chamada coisa
julgada administrativa, ou que as agências exercitam verdadeira atividade de
justiça administrativa, nos moldes de dualidade de jurisdição de concepção
francesa. Todavia, essa assertiva não é verdadeira. Primeiro porque é fato que a
justiça ordinária una dos Estados Unidos da América pode, ainda que com
limitações, rever as decisões das agências. Isso se opera, por ato do particular,
em caso de omissão, pelo uso do writ of mandamus, amplamente aceito pela
jurisprudência da Suprema Corte, ou, no caso contrário, de ação de qualquer
das agências, em sede de defesa oponível perante o órgão de jurisdição monopolizada.
Essa solução nos é dada por Alfred C. Aman Jr. e Willian T. Maton17,
que sustentam que “um indivíduo com interesse em oposição à decisão da agência
não precisa iniciar uma ação legal. Ao contrário, pode agir contrariamente à
posição da agência e, assim, esperar uma ação judicial desta contra ele” oportunidade
em que levaria às Cortes a discussão acerca da matéria administrativa.
Ainda que, no mecanismo da ação quase-judicial das agências norte-americanas,
se encontre espaço para a chamada preclusion of review, derivada da
discricionariedade técnica que lhe atribui o ordenamento na busca da concretização
da eficiência na prestação de serviços de natureza pública, no que
tange à legalidade de suas ações, máxime em face da consagração dos civil
15 ALFRED C. AMAN JR. e WILLIAN T. MATON, Administrative Law, 2001, pp. 338 e segs.
16 CELSO AGRÍCOÇA BARBI, Do Mandado de Segurança, 1987, pp. 39 e segs.
17 ALFRED C. AMAN JR. e WILLIAN T. MATON, ob. cit., p. 349.
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wrights, o judicial review, ainda que mitigado, é sempre possível, o que afasta
este sistema daquele denominado de dualidade de jurisdição.
3. Dualidade de jurisdição - O contencioso administrativo
Por contencioso administrativo, ou sistema de jurisdição dupla, ou sistema
francês, o qual outras designações podem servir a expressar, como jurisdição
dual, dualidade jurisdicional ou mesmo jurisdição administrativa, entende-se
aquele modelo que se contrapõe ao sistema de unicidade de jurisdição da justiça
ordinária, o qual institui aparelhamento próprio e distinto para o julgamento
de litígios do Direito Comum para o conhecimento exclusivo de causas exorbitantes
e derrogatórias daquele Direito (comum) informados por princípios
não privatísticos de Direito Público.
Resultante da acirrada luta que se travou no ocaso da Monarquia entre o
Parlamento, que então exercia funções jurisdicionais, e os Intendentes, que
representavam as administrações locais18, o contencioso administrativo se compreenderia,
para alguns, no conjunto de litígios que podem resultar da atividade
da Administração.
A justificar a existência de uma verdadeira justiça especializada administrativa
fora do âmbito do Poder Judiciário, permanece atual a exegese do conselheiro
David, a partir do famoso Caso Blanco, raciocínio este transcrito por
Gualazzi19, que admite o juízo publicista. Senão, o vejamos:
“Se o litígio entre a administração e o administrado não gravita sobre
matéria administrativa, a matéria é de ‘Direito comum’, está no Código
Civil e no Comercial, caracterizando-se por princípios de Direito Privado
e sendo decidida por tribunais não administrativos. A justiça comum
decide matéria de Direito comum, culminando com a sentença final
prolatada pela Corte de Cassação, cujas decisões fazem res judicata
privada, res judicata do Direito comum.
Se, porém, o litígio entre a Administração e o administrado versa assunto
administrativo, a matéria-prima ‘está fora’ do Direito comum, sai ou
exorbita da área do Direito comum, para entrar na esfera ou órbita do
18 ROGER BONARD, Le Contrôle Jurisdicionel de L´Administration, 1934, pp. 152 e segs.
19 EDUARDO LOBO BOTELHO GUALAZZI, ob. cit., p. 85.
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Direito Administrativo e, pois, ser conhecida e decidida por tribunais
administrativos, em cujo vértice se encontra o Conselho de Estado, cujas
decisões fazem res judicata pública, administrativa, quando dão a última
palavra na solução de tais litígios”.
Justiça dupla ou duplicidade de jurisdição consistiria, então, no sistema de
distribuição de justiça que credencia todo um aparelhamento paralelo e inconfundível
com o Poder Judiciário, encarregado de julgar litígios em que a
Administração, em matéria administrativa, é parte adversa do administrado,
contendendo ambos acerca de assunto administrativo.
Este sistema, desta maneira, admite, ao lado do Poder Judiciário, o aparelho
judicante administrativo, o contencioso administrativo, cujo ápice da estrutura,
paralelo de Corte Suprema, é o Conselho de Estado.
Tradicional no Direito Administrativo francês, a expressão contencioso
administrativo já fomentou, em nosso Direito doméstico, sérias controvérsias,
seja pelo sentido etimológico do termo, seja por sua própria instituição e
funcionamento.
Cardozo de Mello Neto20 chegou mesmo a exclamar ser o contencioso
administrativo “monstro jurídico de invenção francesa, onde a administração é
juiz e parte ao mesmo tempo...”, encontrando, em seu sucessor na cadeira de
Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
o eminente Mário Masagão21, outra voz crítica quanto ao tema. Para este
último, que aparentemente comungava das opiniões de seu antecessor, os
próprios termos da denominação contencioso administrativo se repeliriam e se
excluiriam, deixando consignado em seu magistério que “a impropriedade da
expressão” seria “chocante”, por considerar que “Direito Administrativo é o conjunto
de princípios que regulam a atividade jurídica não contenciosa do Estado em
que não apareça a função jurisdicional, a função de distribuir justiça. Sempre que
haja querela, ou esteja em jogo algum direito, cuja efetuação seu titular reclame, a
função de Estado deixa de ser administrativa para ser judiciária. ‘Administrativo’ e
‘contencioso’ são dois termos que se repelem e excluem”.
Todavia, tanto um quanto o outro, obtempera-se, talvez estivessem
20 CARDOZO DE MELLO NETO, Lições Taquigrafadas em 1919 por M. Erichsen, pp. 224 e 226, apud MÁRIO
MASAGÃO, Conceito de Direito Administrativo, Escolas Profissionais do Lyceu Coração de Jesus, 1926, p. 44.
21 MÁRIO MASAGÃO, ob. cit., p. 43.
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altamente sugestionados pelo novo modelo republicano vigente no Brasil,
profundamente contaminado pelo ideal norte-americano de organização.
Assim é que o mui digno professor Cardozo de Mello Neto, provavelmente
se referia ao sistema francês da Administração-juiz, que vigorou em França
por apenas dez anos (1789 a 1799), quando os funcionários da Administração
ativa ainda julgavam os litígios administrativos, o que foi totalmente
superado após aquele período com a criação legal do contencioso administrativo,
separado e independente da Administração ativa, como também do
Poder Judiciário.
Já as críticas do ilustre professor Mário Masagão são rebatidas com o
argumento de que a expressão contencioso administrativo contém dois termos
que se harmonizariam perfeitamente, em vista do modelo gaulês de estruturação
atualmente vigente, posto que se constituiria, na acepção técnico-jurídica,
na parcela administrativa do conjunto global de litígios que são contenciosamente
conhecidos e decididos no âmbito das funções jurisdicionais do
Estado, consubstanciando-se em espécie do gênero jurisdição contenciosa e
que caracterizaria a dualidade de jurisdição.
O instituto sobre o qual se debruçam os estudos originou-se após longo
desenvolvimento histórico vivenciado pela França, o qual foi bem diferente
daquele experimentado pela Inglaterra e que já foi objeto de análise,
anteriormente.
No nascituro das instituições francesas, mais precisamente na Idade
Média, inexistia Administração ou jurisdição judiciária, quanto menos, jurisdição
administrativa. Só uma autoridade era conhecida — o senhor feudal —
o qual detinha todos os poderes e, a seu critério, delegava alguns deles a
oficiais sem qualquer especialização de funções. A Monarquia emergente seguia
a mesma linha senhorial e agia da mesma forma.
Durante esse longo período do Ancien Régime, entretanto, duas tendências
desenvolveram-se paulatinamente: uma que distinguia as funções administrativas
e jurisdicionais e outra que pendia a especializar a matéria no próprio
cerne da função jurisdicional precípua. A primeira teria decorrido do
fato de certos delegados do rei se haverem especializado pouco a pouco em
funções administrativas, ao passo que outros se especializaram em funções
jurisdicionais; a segunda ter-se-ia originado do fenômeno político-administrativo
de a Monarquia haver retirado o conhecimento e decisão de súplicas e
decisões administrativas ou relacionadas aos negócios do Estado dirigidas ao
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Rei, relegando-as ao conhecimento dos juízes comuns competentes ao conhecimento
dos litígios entre os particulares e à repressão penal. Verifica-se, então,
que, desde aquele período, a função jurisdicional se especializou, no que tange
à matéria administrativa, em torno do Conselho do Rei, formado, àquela
oportunidade, por prebostes, senescais, governadores e intendentes.
Os intendentes, por sua vez, cercavam-se de conselheiros para os assuntos
contenciosos e suas decisões podiam ser objeto de recurso ao Conselho do Rei,
entendendo parte da doutrina que aqueles intendentes foram os ancestrais
remotos dos Conselhos de Prefeitura gauleses, que evoluíram aos atuais Tribunais
Administrativos franceses. Em contrapartida, o próprio Conselho do Rei já
estatuía, naquele mesmo período, sobre matéria administrativa e fiscal por
meio de uma seção especial denominada de Finanças e Direção, que exercia,
também, função jurisdicional administrativa contenciosa, a qual parece ser a
remota e ancestral seção do contencioso do atual Conselho de Estado francês.
Verifica-se, a par disso, que, desde seus primórdios, a Monarquia francesa
adotou a distinção das funções administrativas das funções jurisdicionais,
jamais deixando, para a salvaguarda, talvez, de seu poder e privilégios,
que o judiciário tivesse o monopólio da totalidade da função jurisdicional,
instituindo, desde suas origens, que não cabia ao mesmo juiz conhecer,
simultaneamente, assuntos particulares e assuntos administrativos, reservando
o contencioso desta última matéria aos juízes mais próximos do corpo
administrativo estatal.
Isso faz revelar que, em França, a jurisdição não nasceu única, mas ao
contrário, dual, ainda sob o império da Monarquia, fruto institucional espontâneo
do assim chamado Ancien Régime, o que não impediu, entretanto, a
ocorrência de reações contra esta peculiaridade, mais aparente e pujante nos
juízes ordinários, como também no Parlamento.
Os movimentos que se contrapunham àquelas reações inspiraram a proclamação,
pela Monarquia, de éditos, dentre os quais se destaca o Edit de Saint-
Germain em 1641, nascido sob a inspiração de Richelieu, que enunciava a
declaração de que “nossa dita Corte de parlamento de Paris e todas nossas outras
cortes foram estabelecidas somente para prestar justiça a nossos súditos; fazemos-lhe
bem expressas inibições e proibições(...) de tomar, no futuro, conhecimento de qualquer
assunto (...) que possa concernir ao Estado, à administração, ao governo, que
reservamos somente à nossa pessoa, que somos nós que lhes damos o poder e a
competência especial pelas nossas cartas patentes”, contra o qual tentaram reagir
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os Parlamentos por meio da chamada Fronde (Frente Parlamentar), iniciada em
1648 e totalmente suplantada posteriormente por Luiz XIV.
A despeito de a reação parlamentar prosseguir, insistindo em subordinar
e submeter os agentes do rei e os oficiais da Administração aos julgamentos da
justiça comum, o que, na época, foram considerados verdadeiros “abusos”,
verificou-se, desde o período, já fortemente arraigada, na concepção gaulesa, a
idéia de dualidade jurisdicional, que resistiu ao advento da Revolução de 1789,
ainda que, com esta, tivessem sido solapadas as instituições políticas, administrativas
e judiciárias do velho regime.
A Revolução incorporou de pronto a dualidade de jurisdição solidificada
na Monarquia, dando-lhe nova roupagem, fato que se confirma ao inspecionar
o legado deixado pela lei de 22 de dezembro de 1789 e a lei 16 de 24 de
agosto de 1790, as quais confirmaram o princípio da separação das funções
legislativas das jurisdicionais, bem como o princípio das funções administrativas
das jurisdicionais, até que a lei 6 de 11 de setembro de 1790 atribuiu
expressa competência às autoridades administrativas (municipalidades, diretórios
de distrito, diretório de departamento) para efetuar julgamentos no
conjunto do contencioso administrativo da época (impostos diretos, indenizações
por expropriações ou utilizações de terrenos, responsabilidade de empreendedores,
mercados de trabalho, dentre outros).
Naquela oportunidade, a Administração ativa foi juiz e parte ao mesmo
tempo, situação anômala que foi corrigida em 1799, com a implantação da
separação entre autoridades administrativas e do contencioso administrativo,
vigente até os dias atuais com a conformação dada por Bonaparte e a reação
termidoriana que derrubou Robbespierre.
No sistema francês, informado pela dualidade de jurisdição, consagrada e
conservada na reforma administrativa de 1953 e mantida pela Constituição
de 4 de outubro de 1958, todos os tribunais administrativos sujeitam-se,
direta ou indiretamente, ao controle do Conselho de Estado, que funciona
como juízo de apelação (juge d´appel), como juízo de cassação (juge de cassation)
e, excepcionalmente, como juízo originário e único de determinados litígios
administrativos (juge de premier e dernier ressorte), posto dispor de plena jurisdição
em matéria administrativa.
Na conformação atual do contencioso administrativo francês, o Conselho
de Estado encontra-se no ápice da estrutura piramidal de organização,
revendo o mérito das decisões como corte de apelação dos Tribunais
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Administrativos (denominação atual dos antigos Conselhos de Prefeitura)
e dos Conselhos do Contencioso Administrativo das Colônias e, como instância
de cassação, controla a legalidade das decisões do Tribunal de
Contas, do Conselho Superior da Educação Nacional e da Corte de Disciplina
Orçamentária.
Contudo, algumas demandas de interesse da Administração permanecem
sujeitas à justiça ordinária desde que decorrentes de atividades públicas
em caráter privado, que envolvam questões de estado e capacidade das pessoas,
de repressão penal e que se refiram à propriedade privada.
A delimitação da competência das duas justiças está a cargo da jurisprudência,
sendo freqüentes os conflitos de jurisdição, que são solucionados pelo
Tribunal de Conflitos, integrado em sua formação intrínseca por dois ministros
de Estado (Garde des Sceaux et Ministre de la Justice), por três Conselheiros
de Estado e por três membros da Corte de Cassação.
O contencioso administrativo francês, pelo que se depreende, possui apenas
dois graus de jurisdição, estando, no primeiro grau, os Tribunais Administrativos
e, no segundo, o Conselho de Estado.
As atribuições deste último variam dentre atividade administrativa e
contenciosa, servindo ao governo na expedição de avisos no pronunciamento
sobre matéria de sua competência consultiva e atuando como órgão
jurisdicional nos litígios em que é interessada a Administração ou seus
agentes.
No Conselho de Estado, há, pois, uma Seção do Contencioso, com um
presidente e três presidentes-adjuntos, dividida em nove Subseções, cada
qual com seu presidente, verificando-se naquela (Seção do Contencioso)
haver formações encarregadas da instrução e outras, do julgamento. Existe,
também, uma espécie de hierarquia nesta estruturação, impelindo-se os
assuntos mais difíceis ao conhecimento das formações mais solenes, sendo
que, em princípio, o julgamento incumbe a uma formação que reúne duas
das Subseções (Subseções Reunidas). Litígios que encerram dificuldades especiais,
ou questões de peculiar e relevante interesse são julgadas pela Seção do
Contencioso, ou, em nível mais elevado, pela Assembléia do Contencioso (organizada
em 1963), onde têm assento, sob a presidência do vice-presidente
do Conselho de Estado, os cinco presidentes de Seção, os dois presidentesadjuntos
mais antigos da Seção do Contencioso, o presidente da Subseção
que tiver instruído o litígio e o relator.
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“Complicado” 22 na sua organização e atuação, o contencioso administrativo
francês, em cujo Conselho de Estado possui cerca de duzentos membros, por
esta mesma razão, recebeu adaptações e simplificações nos diversos países
para os quais o modelo irradiou-se, destacando-se, dentre alguns, a Suíça, a
Turquia, Finlândia, a Grécia, a Iugoslávia e a Polônia.
Sua irradiação fixa marco inconteste na evolução do Direito Administrativo,
ao suscitar distensões da abordagem gaulesa como elemento essencial na
formação e desenvolvimento do Direito Público universal, de modo a formar
soluções intermédias entre o contencioso administrativo e o sistema anglosaxônico
da jurisdição una.
Não se conformando em dogmas eternos, mas antes em tipos ideais,
teríamos que, quanto mais um sistema aproximar-se de um daqueles tipos,
como tal será considerado, sendo contencioso administrativo aquele que observar
a cisão dual da jurisdição em face dos assuntos administrativos, ainda que
não acompanhe, ipsis literis, o modelo francês e desde que não permita à justiça
comum conhecer da matéria, resguardada a exclusividade das cortes administrativas.
4. O sistema administrativo brasileiro
À semelhança do que ocorreu na Europa continental, o Direito Administrativo
não nasceu, no Brasil, como ramo autônomo da ciência jurídica, enquanto
o país esteve sob o regime da Monarquia absoluta23.
A legislação, a administração e a distribuição da justiça nos tempos das
Capitanias Hereditárias estavam concentradas nas mãos dos donatários, destinatários
absolutos dos poderes outorgados pela Coroa portuguesa. Quando
da criação do Governo-Geral, a despeito de o governador-geral deter
grande parte dos poderes, se experimentou a divisão de certas atribuições,
dentre as quais se destacavam a do representante do rei (governador-geral),
a de representante do fisco (provedor-geral) e a de distribuidor de justiça
(ouvidor-geral). Todavia, tamanha era a concentração de poderes nas mãos
do governador-geral, que, a partir de 1640, aquele cargo teve sua denominação
mudada para vice-rei.
22 HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p. 45.
23 MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito Administrativo, Atlas, 1996, p. 37.
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Com o advento do Império, verificou-se uma divisão de funções entre os
Poderes Legislativo, Judiciário, Executivo e Moderador, os dois últimos concentrados
nas mãos do Imperador, podendo-se, entretanto, afirmar-se que
naquela época já existia uma administração pública organizada, regida praticamente
pelo Direito Privado, que o então criado Conselho de Estado brasileiro
se limitava a empregar.
Com o início do período republicano, suprime-se o Poder Moderador e a
jurisdição administrativa, antes atribuída ao Conselho de Estado. A Administração
Pública começa, então, a agilizar-se e a afastar-se dos moldes do direito
privado. Imbuído por este sentimento, Hely Lopes Meirelles24 sustenta que
“o Brasil adotou, desde a instauração de sua primeira República (1891), o sistema
da jurisdição única, ou seja, o do controle administrativo pela Justiça comum.
Daí a afirmativa peremptória de Ruy, sempre invocada como interpretação autêntica
de nossa primeira Constituição Republicana: ‘Ante os artigos 59 e 60 da nova
Carta Política, é impossível achar-se acomodação no direito brasileiro para o contencioso
administrativo’.”
Esta orientação brasileira, sustentada de forma uníssona a doutrina pátria,
é de forte inspiração no Direito Público norte-americano, o qual nos forneceu
o modelo de nossa primeira Constituição Republicana, que, por sua vez, adotou
todos os postulados do rule of law e do judicial control daquela Federação.
No Brasil, como nos Estados Unidos, vicejam órgãos e comissões com
jurisdição administrativa, parajudicial, cujas decisões, contudo, não têm caráter
conclusivo e absoluto para o Poder Judiciário. Esse as pode rever, assim
que provocado a fazê-lo.
Outrossim, ainda que definitivamente fincado na orientação inglesa do
controle da Administração, experimentou-se, timidamente, pelo advento da
Emenda Constitucional número 7, de 13 de abril de 1977, a possibilidade
de criação de contenciosos administrativos no Brasil, os quais Hely Lopes Meirelles25,
contudo, qualificou de “semi-contenciosos inúteis” por carecerem de
poder jurisdicional e, portanto, poderem receber revisão do Poder Judiciário,
o que, sem dúvida, contribuiu para sua não-implementação e culminou com
seu descarte em 1988, com o início da nova e positiva ordem jurídico-constitucional
pátria.
24 HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p. 48.
25 HELY LOPES MEIRELLES: Direito Administrativo Brasileiro, RT, 1987, p. 31.
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Para a supressão de contendas e lides entre Administração e administrados,
pois, os meios processuais admitidos pelo Direito comum são os que se
utilizarão, perante o mesmo Poder Judiciário — uno único —, que, no país,
decide acerca das questões de Direito Público e de Direito Privado.
5. Considerações finais
Acostumados a compreender a unicidade de jurisdição como parte integrante
de nossa realidade, fácil pender-se para a conclusão de que o sistema
inglês é configurado com filosofia prática mais lógica quando comparado ao
contencioso administrativo.
Chega mesmo a soar inconveniente o estabelecimento de dois critérios
de justiça, ou de duas justiças, uma situada onde deveria, a saber, no Poder
Judiciário, e outra, ou alocada no seio do Poder Executivo, ou mesmo constituindo-
se um verdadeiro Quarto Poder, inconcebível aos defensores mais ortodoxos
do ideário de Montesquieu.
Além disso, a idéia de jurisdição dupla aparenta ser um contra-ponto ao
princípio do Estado de Direito, almejado ícone da democracia, que coloca,
reconhece e garante aos indivíduos e à Administração, por via de uma mesma
justiça, os seus direitos fundamentais em pé de igualdade, sem os privilégios
de uma justiça especial e com as garantias de independência necessárias à
Magistratura, onde, ainda que admitido um sistema derrogatório e exorbitante
do Direito Privado, se contorna pela isonomia com traços mais nítidos.
Mesmo em face da tese esposada pelos defensores da instituição do
contencioso administrativo no Brasil, a quem este sistema de jurisdição dupla
seria reclamado pela máxima de que “a matéria é a causa determinante da
forma” como fundamento lógico da proposição, poder-se-ia a eles responder
que os juízes brasileiros não deixam de fazer da prática administrativa
parte de sua atividade diária, vez que, como agentes políticos, e paralelamente
à função de julgar, exercem diuturnamente, funções típicas administrativas,
ordenando o quadro de seus serventuários, cuidando do patrimônio
público, da máquina judiciária, presidindo sindicâncias e licitações, além
de outras mais, que os obriga a conhecer do Direito Administrativo em sua
fonte primordial, credenciando-os à solução de causas deste objeto quando
assim exigido, da mesma forma, talvez, que um agente da chamada Administração
ativa.
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Em França, o contencioso administrativo se explicaria pela instituição tradicional
do Conselho de Estado, que integra o regime daquele país como peculiaridade
de sua própria organização política, o que não faz afigurar que, em
outros países, possa esta situação sobrepujar vantagem concreta sobre a unicidade
de jurisdição.
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fonte: http://www.epm.org.br/NR/rdonlyres/C5E335DF-2AE3-45B4-86E1-FDCAD41FFDB7/206/RevistadaEPMano4n2.pdf

2 comentários:

Anônimo disse...

very good!

maria da gloria perez delgado sanches disse...

Professora, bom dia!

Muito bom o conteúdo dos seus blogs.
Acompanho há algum tempo e eles tem me ajudado muito na faculdade.
Parabéns!

Andressa de F. Gomes

ITANHAÉM, MEU PARAÍSO

ITANHAÉM, MEU PARAÍSO
Seus sonhos podem ser medidos? Cabem em seu bolso ou em seu coração?

MARQUINHOS, NOSSAS ROSAS FICARAM LINDAS!!!

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